quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

As Pessoas Com Olhos Sem Alma

Como a vontade é maior que o medo nós entramos.
E aparecem aquelas pessoas estranhas, os loucos, andam por ali como espectros.
Nem bons, nem maus, apenas vagueiam.
E o medo passa
.
Todos nós conhecemos pessoas dessas em alguma altura da nossa vida.
Mas não são as nossas pessoas.
São as pessoas de outro alguém. Muitas nem são de ninguém.
Mas quando são nossas reparamos nos pormenores todos.
Olhamos para elas e o seu olhar não tem essência.
Não há brilho.
São para mim as pessoas sem alma.

Tudo São Fechaduras

O primeiro sinal de que não nos encontramos num hospital normal são as fechaduras.
Tudo está trancado.
Mesmo na hora da visita temos que bater à porta para entrar, tudo é clausura.
Se o nosso familiar estiver à distância de cinco portas, são cinco paragens que temos de fazer.
A minha pessoa, aquela que eu ia visitar, estava à distância de duas portas trancadas. E de um elevador com cadeado.

E como se fossemos a um qualquer circo de barbaridades o medo vem ao de cima.
E se alguém me ataca?
O medo primário de que a loucura é agressiva.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Horror Não Está Na Entrada Mas Dentro De Portas

Percebi porque tudo parecia calmo, harmonioso.
O horror está das portas para dentro.

O Hospital

E então entrei no Hospital, não como uma visita normal, mas como uma visita de sangue. Sabia que ia ver ali o meu sangue, mas sem alma, um sangue aguado.
Sem a vermelhidão do que nos torna conscientes.
E todo o Hospital é verde e calmo.
Com a enormidade das coisas impossíveis.
É assim aquele hospital quando temos lá alguém que amamos.
Esperamos o horror a cada esquina mas apenas temos árvores e folhas, num outono calmo. Como se fosse uma publicidade de um qualquer retiro espiritual.

A Recusa

Não aceito isto.
Ela teve um avc. Foi isso que ela teve.
Isto é um engano.
Alguém se enganou.
Alguém está a trabalhar mal.
Eu vou lá, mas não vou hoje, ela tem que descansar.
Eu preciso tirar dúvidas. Eu vou lá. Mas não hoje.
Ela precisa descansar.
E eu preciso de me convencer.

Mas eu vou lá...Vou gritar, dizer que alguém se enganou.
Vou dar pontapés em tudo. Vou pôr tudo a funcionar.
Alguém se enganou..

Um Mundo Que Já Não É Este

Nessa noite a N. ficou internada.
Um surto psicótico era o diagnóstico.
E eu, no meio das minhas lágrimas e das minhas dúvidas, aceitei.
Soube que tudo tinha mudado nesse instante, ainda não sabia era o quanto.
Ia ser transferida no dia seguinte para aquele hospital das anedotas. Aquele que existia apenas no sarcasmo do nosso dia a dia.
O Júlio de Matos.


Aquela que era a mulher mais forte da minha família, o tronco, tinha sucumbido.

Ninguém espera

Quando pensamos em doenças, pensamos numa perna partida, numa infecção, num cancro.
E não estamos preparados para isso.
Nunca estamos.
Mas perante uma doença mental perdemos o chão.
Não temos máquinas para medir a gravidade, não temos análises para detectar valores.
Não temos máquinas para radiografar o cérebro.
Uma doença mental que aparece em alguém saudável é o abismo.
Num momento tens alma e noutro ela esfumou-se.

domingo, 27 de dezembro de 2009

O Início

O início desta caminhada nunca nos levaria a pensar no desfecho que teria.
Começou por uma má disposição geral que se traduziu numa forte dor no peito e na parte esquerda do corpo afectada, com os dedos das mãos dormentes.
N. foi levada para as urgências e, perante o quadro que se apresentava, a médica de serviço decidiu transferi-la para o Hospital de Santa Maria uma vez que desconfiava de ataque cardíaco. Lá, depois de vários exames, entre análises, raio x, e electrocardiogramas, foi-lhe diagnosticada uma infecção muscular. Foi então seguida pelo médico de família que confirmou o diagnóstico e acrescentou que estaria com algum tipo de depressão ou esgotamento.
N. tem 41 anos é mãe de uma rapariga de 16 anos e saiu à poucos anos de um divórcio. Tem vários trabalhos e uma vida bastante activa.
O médico achou que tinha de parar por umas semanas.
Depois deste episódio a sua condição física degradou-se totalmente. Passou a estar quase sempre sentada ou deitada e quando tinha que se deslocar fazia-o como uma pessoa de 80 anos. Tinha desequilíbro para o lado direito.
As suas queixas físicas aumentaram apesar de estar medicada. Esta situação manteve-se por duas semanas, quando me comecei a aperceber que o seu discurso se começou a alterar.
Ela, que era uma pessoa social mas bastante reservada com a sua vida privada, passou a falar sem parar, demorando horas ao telefone com assuntos do passado. Tinha um discurso que oscilava entre a euforia e as lágrimas, perdendo diversas vezes a linha de raciocínio, tendo alguns acessos de irritabilidade.
Confesso que nas primeiras vezes pensei que estivesse carente, depressiva, com necessidade de conversar. Mas a verdade é que à medida que os dias passavam as coisas pioravam, as conversas já não se limitavam apenas ás pessoas intimas mas a qualquer pessoa que com ela se cruzava nas poucas vezes que veio até à rua. Perdeu por completo o pudor social. Passou a não querer comer absolutamente nada porque piorava o seu já antigo problema de obstipação. Desenvolveu um fascínio por chás e bebia-os a toda a hora. Avivou a memória para factos que ninguém se lembrava e confrontava-nos com eles, os bons e os maus. Passou a achar que conspirávamos contra ela, com sinais que não existiam.
Pensei que tivesse tido algum tipo de lesão neurológica, um avc, um coágulo, um tumor cerebral.
No auge dos sintomas demos entrada na urgência do Curry Cabral, não para uma consulta de neurologia mas sim de psiquiatria.
Para conseguirmos convencê-la a deslocar-se ao hospital demoramos um dia inteiro.

Começou aí o pesadelo.

O Mundo Da Dor Invisível

A alguém que me é muito próximo, o mais próximo que o sangue permite, foi-lhe diagnosticado doença maníaca-depressiva.
Hoje a essa doença dá-se o nome de bipolar.
Tinha da doença uma ideia muito pouco real.
Achava que se resumia a uma oscilação de humor que alternava entre a depressão e a euforia. Algo que, visto dessa forma, parece ligeiro, algo que qualquer um de nós pode ter em determinadas alturas da sua vida.
Não podia estar mais enganada.
A bipolaridade, aquando de um surto, é altamente incapacitante.
Para quem a tem e para quem lhe assiste.
Por isso criei este blogue.
Não só para desabafar mas também com a esperança de trocar ideias com outros que se confrontaram com este mundo de dor invisível.