sábado, 27 de fevereiro de 2010

Os Teus Caracóis

Pelo céu às cavalitas,
Escondi nos teus caracóis,
A estrela mais bonita, que eu já vi

Eu cresci com um encanto,
De ser caçador de sóis,
Eu já corri tanto, tanto para ti

Fui um príncipe encantado
Montado nos teus joelhos,
Um eterno enamorado, a valer

Lancelot de algibeira,
Mas segui os teus conselhos
Para voltar à tua beira
E ser o que eu quiser


Os teus olhos foram esperança
Os meus olhos girassóis
Fomos onde a vista alcança da nossa janela

Já deixei de ser criança e tu dormes à lareira
Ainda sinto a minha estrela nos teus caracóis



Ala dos Namorados

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um Deserto de Lágrimas

Durante todo este tempo nunca chorei.
Houve pessoas que o fizeram.
Não sei porque nunca o fiz, mas sabia que haveria de pagar uma factura elevada por isso.
Mais tarde, eventualmente, teria um oceano.
Naquela altura não fui mais que um deserto.
Mesmo que por dentro tudo fosse um vulcão.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O Intervalo

Há um intervalo.
Talvez esse intervalo te deixe os pulmões expelir o ar todo.
Talvez não tenhas que respirar por golfadas.
Podes esquecer por uns dias o terremoto.
Talvez o sono seja mansinho agora.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Natal em Folhas de Papel

E estamos na semana do Natal.
Não quero deixar-te ali.
Tu não queres ficar ali.


Pensei que talvez fizessem um jantar na noite de 24.
Talvez pudesse alguém acompanhar-te.
Não.
Não há nada de especial para esse dia.
Achei desumano e terrivelmente solitário, mas entendi.
Há horários para cumprir, medicação para dar.
E percebi que à noite há um comprimidinho mágico que ensona e torna tudo mais calmo.

Mas tu não desistias.
Fazias planos.
Querias sair.
Não querias passar a quadra na companhia de umas árvores de Natal feitas de revistas.
Estranhas aquelas árvores, complexas, cheias de letras e caras
.
E tu a esforçares-te para me explicar como se faziam.
Que haverias de fazer algumas para casa e pendurar o que quisesses.

Os dias a passar, a minha apreensão a aumentar.
Não quero este Natal
.
Vou deitar-me cedo.
Talvez também eu tome um comprimido maravilha.
Talvez adormeça rápido.

E então uma boa notícia.
O médico, depois de nos consultar, deixa-te vir passar o Natal a casa. Condição...voltar passado quatro dias.
O teu sorriso, os teus planos.
Compras que tens que fazer para os sobrinhos.
Compras que apenas serão feitas dias depois.
A agitação. Estou contente mas apreensiva.

E se não quiseres voltar?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

E Se Também Eu Ficar Louca?


Partilhamos os mesmos genes.

Mais do qualquer outra pessoa, a minha mãe, as minhas filhas, é contigo que o mapa genético mais se aproxima.

E se a tua doença, a tua loucura, for um prelúdio da minha?

domingo, 24 de janeiro de 2010

Um Tempo Que Passou

Os Corações Também Se Partem

Com a redução da medicação volta não só a memória mas também a angústia.
A N. começa a aperceber-se melhor do que a rodeia.
Começa a agitação.
Apesar de não saber em que hospital se encontrava, achava que ainda estava no Curry Cabral, percebe que está presa.
As visitas passam a ser mais difíceis. Pensa sempre que sairá naquela hora, que alguém lhe dará alta e poderá vir embora connosco.
Começam as mentiras.
Temos que tentar contornar sempre o assunto.
Enganá-la.
Dizer que ficaríamos à espera dela na rua.
E então ela sentava-se à porta da sala do médico e esperava ser atendida, esperava por uma alta que nunca aconteceria.
Não naquele dia.
Nessa altura,apesar de melhor, ainda estava muito confusa. Dizia que nos telefonaria do seu telemóvel para subirmos e irmos buscá-la.
Não havia telemóvel nenhum.
Quase não passava tempo nenhum connosco na visita.

Com medo de passar a hora e não poder sair, sentava-se ao pé das salas dos médicos e esperava.

E nós esperávamos, sozinhos, na sala das visitas.
À medida que os dias passavam foi ficando mais irascível.
Era agressiva principalmente com os mais chegados. Chegou a gritar-me que eu não a ajudava a sair dali.
E de cada vez que isso acontecia o meu coração partia-se.
Os corações também se partem.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O Amor Que Se Desprende

O amor é algo estático.
Amamos os que temos de amar.
A mãe, o pai, o marido, os filhos, os irmãos.

Amamos porque sim.
Nunca pensamos nisso.
Está destinado.

A verdade é que nunca sabemos o quanto amamos até a vida nos pregar uma partida e tornar o amor algo consciente.
Parece um cliché, algo que todos já ouvimos, e talvez seja.
Mas é também terrivelmente verdadeiro.

É a altura em que se separa o trigo do joio.
Em que as palavras são de somenos importância.
É a altura em que o amor se desprende e se revela.

Em que sabemos que não queremos estar naquele barco mas que, e apesar de tudo, iremos ao fundo com ele.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Melhorzinha

A médica, que é uma miúda, disse-me que o diagnóstico não era definitivo.
Para conseguir perceber melhor o que se passava teria que falar com a minha pessoa.
Para lhe falar, e para que ela lhe falasse, teria que reduzir a medicação.
E reduziu.
Percebi isso num dia em que a visitei e o olhar dela já encontrava o meu.
Percebi que não estava tão confusa.
Que a memória parecia ter voltado miraculosamente, como se tivesse retomado do ponto onde tinha ficado uns dias atrás.
Perguntou pelas pessoas, falou como se o tempo nunca tivesse avançado.
Isso foi bom.
Para muitos foi óptimo.
Para mim não chegou.
Queria tudo mais rápido.
O pouco, que era muito para todos, era angustiante para mim.
Recusei-me a aceitar uma pessoa melhorzinha.

Todos insistiam nesta palavra.
Eu recusava.
Não a quero melhorzinha.
Quero-a no todo.
É tudo ou nada.
Não aceito o meio termo.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Os Primeiros Dias

As visitas continuaram.
O hospital, apesar de mais familiar, não perdeu para mim o seu ar de anormalidade.
O desconforto que me provocava de cada vez que lá entrava.
As portas fechadas que me lembravam uma prisão.
Nunca consegui lá entrar com o espírito leve.
Na verdade era como se tudo em mim anoitecesse.

Nesses primeiros dias a N. esteve o mais baixo que alguma vez lhe vi.
Recebia as pessoas contente mas, logo de seguida, perdia os laços que nos unem aos outros.
Desligava-se da nossa presença e entrava num mundo qualquer que não era o nosso.
Ainda hoje não aceito que fosse esse o mundo dela.

Não conseguia levar uma conversa até ao fim e acabávamos a falar apenas de trivialidades.
Do banho, do almoço, do frio.
Coisas simples que falamos com crianças que ainda não têm muito vocabulário. Nessa fase as paranóias estavam no máximo. Confundia doentes com médicos. Arranjou um papel onde escrevia os nomes do pessoal hospitalar e de outros doentes.
Escrevia apenas numa cor. Laranja.
Nunca perguntava por ninguém. Nem pela filha.
Pareceu-me que naquela altura a memória, se existia, tinha desligado.
Apesar de ser uma fase muito angustiante foi a altura em que nos era fácil sair no fim da visita.
Mais para a frente isso viria a mudar.
E a tornar as coisas ainda mais dolorosas.

sábado, 9 de janeiro de 2010

As Brechas Que Se Abriram

A tendência é de culpar alguém ou algo.
A verdade é que todos nos culpámos, uns mais que outros.
Mas como ninguém quer admitir a culpa tendemos a sacudi-la e a apontar baterias noutras direcções.
Tentar encontrar qualquer explicação lógica no meio de tanta irracionalidade.

Uns, pura e simplesmente, demitem-se de qualquer obrigação.
Tentam passar à parte de tudo.
Não perguntam nada.
Estão o mínimo de tempo possível. Talvez lhes seja penoso presenciar a degradação.
Talvez não saibam como lidar com tudo o que acontece.

Se a família tiver muitos fantasmas eles materializam-se nestas alturas.
Todos querem opinar, controlar.
As mágoas, tão bem guardadas, explodem e viramo-nos uns contra os outros. Tentei usar a lógica, tentei não me culpabilizar, mas reconheço que nem sempre consegui.
Cobrei bastante. Aos outros e a mim mesma.
Esta é basicamente uma doença da alma.

Cria novas feridas. Mas pior que as novas são as velhas que se abrem.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Não Há Rio Que Comporte As Minhas Lágrimas

Esfumou-se tudo.
A questão não é física. A questão é outra coisa qualquer que eu não alcanço por mais que pesquise. Não tenho idade para isto.
Não é uma criança, é uma pessoa adulta.
Não sei lidar com isto. Quero dar-lhe estalos, trazê-la de volta.
Não podes fazer isto agora, não temos tempo para isso.
Cada um tem a sua vida.
Não podemos mudar tudo só porque perdeste o tino.
Estás a brincar, fizeste de propósito. Põe-te boa porra.

Se eu te abanar acordas?

A Minha Busca

Havia um diagnóstico provisório.
E eu fiz aquilo que podia, a única coisa que podia fazer não sendo médica, pesquisei exaustivamente tudo o que me poderia ajudar a entender a doença.
E de repente tudo fazia sentido
.
Tudo batia certo.

As doenças que não existem, o mundo rápido em que ela se encontrava que não lhe permitia terminar nenhuma tarefa ou conversa.
As obsessões com as águas e os chás. O travão do bom senso que tinha destravado.
O emagrecimento repentino porque simplesmente se recusava a comer por paranóias com a obstipação.
Tudo agora fazia tanto sentido que se tornou assustador.
Eu estava agora perante outra pessoa.

Como se estivesse a conhecer alguém pela primeira vez.
As suas particularidades, as suas manias, os seus desejos.
Como se outro alguém se tivesse apoderado do seu corpo.
O mesmo corpo mas com uma alma diferente.

Se é que havia alma.

O Que Ela Me Explica

A minha noção de bipolaridade é aquela que vagueia por aí.
Qualquer pessoa estranha, com um humor estranho é bipolar.
Achei que o caso da N. era muito mais que isso.
A N. tinha perdido o tino, estava desconfiada, era como uma criança de cinco anos que precisava de orientação.
E então a médica orientou-me
.
Chamou-me a atenção para pormenores que eu não associava à bipolaridade.
O discurso descordenado, assuntos que começavam e não acabavam, dificuldade em parar de falar.
Inquietude, não conseguir estar parada, levantar-se vezes sem conta.
Nem na hora das visitas a nossa presença a acalmava, não conseguia estar muito tempo sentada a conversar.
Sem que a médica me abrisse muito o jogo, presumo que seja uma táctica para não nos chocar ou melindrar, percebi que ela achava que as queixas físicas eram meramente psicossomáticas.

Fiquei chocada.
Admito que preferia um AVC a uma doença mental.
Ninguém quer isso. Há muitas dúvidas, muitos medos.

Não queria esses medos.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A Médica Que É Uma Miúda e a Primeira Resposta

A médica recebe-nos.
Na verdade fomos nós que a recebemos. A ânsia era nossa.
Do que me lembro mais desse encontro foi o facto de quase não a ter deixado falar.
E de ela não falar muito. De ter ouvido.

Do meu medo de que a minha pessoa estivesse no local errado. A minha insistência para que se fizesse um Tac, para que se analisasse o cérebro.
Entrei com a adrenalina no máximo.
E ela ouviu.

Fez algumas perguntas do foro psicológico e eu pensava que ela estava a ir pelo caminho errado. A minha pessoa tinha era um problema neurológico. Porque não viam isso?

E ela continuava, a família, episódios de depressão anteriores.
E eu insistia. Talvez fosse outra coisa.

Soube e senti que ela não achava o mesmo.
E então perguntei o que ela achava.
Bipolaridade
.

Não vou mentir.
Já me tinha ocorrido. Pesquisei tudo o que podia. Receei esquizofrenia.
Mas apesar de tudo achei ou agarrei-me a outras possibilidades.
Por momentos fiquei aliviada. A bipolaridade é apenas uma alteração de humor.

Não podia estar mais enganada.

O Surreal Permanece

Nada ali é dado por acaso.
Não há nenhuma conversa de corredor.
Ninguém nos dá uma dica nas visitas. Ninguém fala.
Para conseguir falar com o médico da N. tive que ligar para lá a marcar uma reunião.
Ligamos a pedir para falar com a pessoa que segue o caso e somos atendidos por uma senhora que se encarrega da agenda do médico.
Por sua vez esse alguém nos ligará de volta a marcar a reunião.
Uma burocracia tão surreal como tudo aquilo que tinha visto nos últimos dias.
Entrei nessa reunião numa taquicardia de dúvidas a pensar que tudo se resolveria ali. Que tudo se iria finalmente clarificar.
A médica da N. é alguém muito novo, não passa dos trinta anos, e volto a ser assolada por medos.
E se ela não tem experiência suficiente?
Quero um médico mais velho, por favor.
Mas quem é esta miúda?

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Um Hospital Muito Pouco Comum

A primeira visita além de estranha é desoladora.
O pessoal hospitalar não mantém, nem faz questão de manter, contacto com a família. Vão muito pouco além do cumprimento social, o boa tarde, como se tivéssemos entrado numa qualquer sociedade secreta em que impera o código do silêncio.
O pavilhão resume-se a umas quantas portas fechadas, um corredor e uma sala maior, a sala de convívio onde vamos poder estar com a nossa pessoa.
Os quartos são interditos.
Nunca soube onde nem como ela dormia.
E lá a trouxeram. Uma sombra de si mesma.
Uma pessoa sem alma como todos os outros com quem me cruzei. Alguém que me sorriu com os lábios mas nunca com o olhar.
E eu lá estive com aquela mulher que me era tão próxima e, ao mesmo tempo, tão estranha naquele momento.
Por aquela altura ainda achava que havia ali um grande equívoco, que estávamos no local errado. As suas ideias estavam completamente baralhadas. Falava-me de visitas que nunca existiram, de pessoas que não via à imenso tempo, pessoas essas que ela achava estarem ou terem estado ali. Ainda hoje não sei se isso devia à doença, se aos medicamentos que lhe deram e que talvez lhe tenham toldado o discernimento. Nos primeiros dias de internamento notei que ela estava completamente dopada.
Não há divisão de género.
Homens e mulheres estão juntos na mesma ala. Homens e mulheres jovens e velhos.
Deambulam pelos corredores numa busca de qualquer coisa que parecem nunca achar.
E ao fim de duas horas tive que sair. Sair e deixar lá uma pessoa que poucos dias atrás era completamente saudável.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

As Pessoas Com Olhos Sem Alma

Como a vontade é maior que o medo nós entramos.
E aparecem aquelas pessoas estranhas, os loucos, andam por ali como espectros.
Nem bons, nem maus, apenas vagueiam.
E o medo passa
.
Todos nós conhecemos pessoas dessas em alguma altura da nossa vida.
Mas não são as nossas pessoas.
São as pessoas de outro alguém. Muitas nem são de ninguém.
Mas quando são nossas reparamos nos pormenores todos.
Olhamos para elas e o seu olhar não tem essência.
Não há brilho.
São para mim as pessoas sem alma.

Tudo São Fechaduras

O primeiro sinal de que não nos encontramos num hospital normal são as fechaduras.
Tudo está trancado.
Mesmo na hora da visita temos que bater à porta para entrar, tudo é clausura.
Se o nosso familiar estiver à distância de cinco portas, são cinco paragens que temos de fazer.
A minha pessoa, aquela que eu ia visitar, estava à distância de duas portas trancadas. E de um elevador com cadeado.

E como se fossemos a um qualquer circo de barbaridades o medo vem ao de cima.
E se alguém me ataca?
O medo primário de que a loucura é agressiva.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Horror Não Está Na Entrada Mas Dentro De Portas

Percebi porque tudo parecia calmo, harmonioso.
O horror está das portas para dentro.

O Hospital

E então entrei no Hospital, não como uma visita normal, mas como uma visita de sangue. Sabia que ia ver ali o meu sangue, mas sem alma, um sangue aguado.
Sem a vermelhidão do que nos torna conscientes.
E todo o Hospital é verde e calmo.
Com a enormidade das coisas impossíveis.
É assim aquele hospital quando temos lá alguém que amamos.
Esperamos o horror a cada esquina mas apenas temos árvores e folhas, num outono calmo. Como se fosse uma publicidade de um qualquer retiro espiritual.

A Recusa

Não aceito isto.
Ela teve um avc. Foi isso que ela teve.
Isto é um engano.
Alguém se enganou.
Alguém está a trabalhar mal.
Eu vou lá, mas não vou hoje, ela tem que descansar.
Eu preciso tirar dúvidas. Eu vou lá. Mas não hoje.
Ela precisa descansar.
E eu preciso de me convencer.

Mas eu vou lá...Vou gritar, dizer que alguém se enganou.
Vou dar pontapés em tudo. Vou pôr tudo a funcionar.
Alguém se enganou..

Um Mundo Que Já Não É Este

Nessa noite a N. ficou internada.
Um surto psicótico era o diagnóstico.
E eu, no meio das minhas lágrimas e das minhas dúvidas, aceitei.
Soube que tudo tinha mudado nesse instante, ainda não sabia era o quanto.
Ia ser transferida no dia seguinte para aquele hospital das anedotas. Aquele que existia apenas no sarcasmo do nosso dia a dia.
O Júlio de Matos.


Aquela que era a mulher mais forte da minha família, o tronco, tinha sucumbido.

Ninguém espera

Quando pensamos em doenças, pensamos numa perna partida, numa infecção, num cancro.
E não estamos preparados para isso.
Nunca estamos.
Mas perante uma doença mental perdemos o chão.
Não temos máquinas para medir a gravidade, não temos análises para detectar valores.
Não temos máquinas para radiografar o cérebro.
Uma doença mental que aparece em alguém saudável é o abismo.
Num momento tens alma e noutro ela esfumou-se.

domingo, 27 de dezembro de 2009

O Início

O início desta caminhada nunca nos levaria a pensar no desfecho que teria.
Começou por uma má disposição geral que se traduziu numa forte dor no peito e na parte esquerda do corpo afectada, com os dedos das mãos dormentes.
N. foi levada para as urgências e, perante o quadro que se apresentava, a médica de serviço decidiu transferi-la para o Hospital de Santa Maria uma vez que desconfiava de ataque cardíaco. Lá, depois de vários exames, entre análises, raio x, e electrocardiogramas, foi-lhe diagnosticada uma infecção muscular. Foi então seguida pelo médico de família que confirmou o diagnóstico e acrescentou que estaria com algum tipo de depressão ou esgotamento.
N. tem 41 anos é mãe de uma rapariga de 16 anos e saiu à poucos anos de um divórcio. Tem vários trabalhos e uma vida bastante activa.
O médico achou que tinha de parar por umas semanas.
Depois deste episódio a sua condição física degradou-se totalmente. Passou a estar quase sempre sentada ou deitada e quando tinha que se deslocar fazia-o como uma pessoa de 80 anos. Tinha desequilíbro para o lado direito.
As suas queixas físicas aumentaram apesar de estar medicada. Esta situação manteve-se por duas semanas, quando me comecei a aperceber que o seu discurso se começou a alterar.
Ela, que era uma pessoa social mas bastante reservada com a sua vida privada, passou a falar sem parar, demorando horas ao telefone com assuntos do passado. Tinha um discurso que oscilava entre a euforia e as lágrimas, perdendo diversas vezes a linha de raciocínio, tendo alguns acessos de irritabilidade.
Confesso que nas primeiras vezes pensei que estivesse carente, depressiva, com necessidade de conversar. Mas a verdade é que à medida que os dias passavam as coisas pioravam, as conversas já não se limitavam apenas ás pessoas intimas mas a qualquer pessoa que com ela se cruzava nas poucas vezes que veio até à rua. Perdeu por completo o pudor social. Passou a não querer comer absolutamente nada porque piorava o seu já antigo problema de obstipação. Desenvolveu um fascínio por chás e bebia-os a toda a hora. Avivou a memória para factos que ninguém se lembrava e confrontava-nos com eles, os bons e os maus. Passou a achar que conspirávamos contra ela, com sinais que não existiam.
Pensei que tivesse tido algum tipo de lesão neurológica, um avc, um coágulo, um tumor cerebral.
No auge dos sintomas demos entrada na urgência do Curry Cabral, não para uma consulta de neurologia mas sim de psiquiatria.
Para conseguirmos convencê-la a deslocar-se ao hospital demoramos um dia inteiro.

Começou aí o pesadelo.

O Mundo Da Dor Invisível

A alguém que me é muito próximo, o mais próximo que o sangue permite, foi-lhe diagnosticado doença maníaca-depressiva.
Hoje a essa doença dá-se o nome de bipolar.
Tinha da doença uma ideia muito pouco real.
Achava que se resumia a uma oscilação de humor que alternava entre a depressão e a euforia. Algo que, visto dessa forma, parece ligeiro, algo que qualquer um de nós pode ter em determinadas alturas da sua vida.
Não podia estar mais enganada.
A bipolaridade, aquando de um surto, é altamente incapacitante.
Para quem a tem e para quem lhe assiste.
Por isso criei este blogue.
Não só para desabafar mas também com a esperança de trocar ideias com outros que se confrontaram com este mundo de dor invisível.